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3 de Maio de 2024

O começo do fim para Datena e companhia?

Ministério Público pede, em SP, condenação de programa que feriu direitos humanos, ao incitar PM ao assassinato. Estudo revela mais de 60 atentados diários à Constituição

há 8 anos

Por Helena Martins*, especial para a Ponte Jornalismo

“Atira, meu filho; é bandido”. Essa foi uma das frases proferidas por Marcelo Rezende, do programa Cidade Alerta, da Rede Record, ao transmitir, ao vivo, uma perseguição policial a dois homens que seriam suspeitos de roubo. A ação culminou com um tiro disparado à queima roupa pelo integrante da Ronda Ostensiva Com Apoio de Motocicletas (Rocam) da Polícia Militar de São Paulo contra aqueles que, repetidas vezes, foram chamados de “bandidos”, “marginais” e “criminosos” pelo apresentador.

A cobertura, feita em junho do ano passado, foi objeto de representação elaborada pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação e pela ANDI – Comunicação e Direitos ao Ministério Público Federal em São Paulo. As organizações apontaram que houve desrespeito à presunção de inocência e incitação à desobediência às leis ou decisões judiciais. No texto, foram descritas as cenas e também as leis desrespeitadas pelo canal, em especial a Constituição Federal, que veda a veiculação de conteúdos que violem direitos humanos e façam apologia à violência, e o Código Brasileiro de Telecomunicações, que determina que “os serviços de informação, divertimento, propaganda e publicidade das empresas de radiodifusão estão subordinados às finalidades educativas e culturais inerentes à radiodifusão” (Art. 38, d).

Agora, o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública contra a Rede Record e a União. O órgão pede que a emissora transmita uma retratação, por dois dias úteis, mostrando não compactuar com o comportamento hostil e com a incitação à violência perpetrada por Marcelo Rezende. Em caso de descumprimento, o grupo deverá pagar multa de R$ 97 mil por dia. O MPF requer ainda que a União cumpra com o seu dever e fiscalize o programa.

As medidas são importantes para enfrentar a perversidade praticada todos os dias pelos chamados programas policialescos. Não é mais possível calar diante de conteúdos midiáticos que se valem de uma concessão pública para ir ao ar e, então, violar direitos de forma sistemática, como comprova pesquisa realizada pela ANDI em colaboração com o Intervozes, a Artigo 19 e o Ministério Público Federal. O estudo (*) aponta que pelo menos 12 leis brasileiras e 7 tratados multilaterais são desrespeitados cotidianamente por esses programas, entre eles a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

A análise de 28 programas veiculados por emissoras de rádio e televisão em dez estados diferentes, ao longo de 30 dias, constatou que 1.936 narrativas possuíam violações. Entre elas: 1.709 casos de exposição indevida de pessoa; 1.583 de desrespeito à presunção de inocência; 605 de violação do direito ao silêncio; 151 ocorrências de incitação à desobediência ou desrespeito às leis; 127 de incitação ao crime e à violência; 56 casos de identificação de adolescentes em conflito com a lei; 24 registros de discurso de ódio e preconceito; 18 ocorrências de tortura psicológica e degradante, entre outros crimes.

Os números servem para comprovar práticas que podem ser observadas praticamente sempre que ligamos o rádio e a TV, especialmente no período do almoço ou no turno da tarde, já que, por serem considerados jornalísticos, os tais policialescos não são submetidos à classificação indicativa – permanecendo, assim, facilmente acessíveis às crianças e aos adolescentes. Poucas são as emissoras que não aderiram à fórmula que combina exploração de sensações (a começar pela dor de quem passa por situações violentas), merchandising e populismo. A estética (e, portanto, a ética) deles penetra também os tradicionais programas jornalísticos, inclusive porque estes passaram, na última década, a buscar responder ao crescimento da audiência daqueles.

Como consequência, temos veículos que levam a praticamente todos os lares brasileiros discursos que criminalizam, sobretudo, setores cujos direitos são historicamente negados, como os jovens negros suspeitos de atos infracionais. Discursos que criam estereótipos sobre comunidades ou populações inteiras, que tratam a violência de forma superficial e que apresentam como resposta aos problemas a redução da idade penal e outras expressões do Estado penal.

Ao passo que este vem se tornando cada vez mais necessário para regular a vida em sociedade com base na força, na vigilância, na produção do medo e na exclusão, também cresce o papel dos meios de comunicação na produção do que Eugenio Raúl Zaffaroni chama de “criminologia midiática”. Esta constrói uma imagem do real na qual estão, em lados absolutamente opostos, as pessoas boas, vulneráveis, e a massa criminosa. Isso é feito, claro, por meio da fabricação do estereótipo do criminoso, de campanhas de ‘lei e ordem’, de ideias rígidas, como a suposta impunidade dos adolescentes que entram em conflito com a lei, entre outros artifícios.

A justificativa para a seletividade penal necessária à manutenção deste sistema excludente e opressor é, assim, construída e reforçada todos os dias. A retórica de que “bandido bom é bandido morto” é exemplo disso. Ademais, ao praticar populismo penal, apresentando, por exemplo, a privação de liberdade em um sistema penal falido como resposta à demanda de segurança, tais programas – e as emissoras responsáveis por eles – privam a sociedade de ter acesso a uma informação plural, contextualizada e completa. Ignoram, por exemplo, o fato de o Brasil ocupar hoje o patamar de terceiro País com a maior população carcerária – posição que galgou, sobretudo, nos últimos dez anos, quanto também vimos o crescimento da violência, o que deixa claro que a saída proposta é absolutamente equivocada.

A figura carismática, o tom apelativo, a apresentação de respostas fáceis e a tentativa de ocupar o papel do Estado como mediador de conflitos e detentor da possibilidade de aplicação do direito abrem caminhos para a eleição de parlamentares – e, em breve, possivelmente de mandatários de cargos no Executivo. Alçados à posição de representantes da sociedade, esses apresentadores muitas vezes passam a integrar a chamada “bancada da bala” e a adotar agendas conservadoras, em especial em relação à segurança pública e aos direitos humanos, contra os quais também rotineiramente são proferidos discursos inflamados no rádio e na TV.

Para enfrentar essa lógica, é necessária, de imediato, uma mudança de postura dos órgãos responsáveis pela fiscalização dos conteúdos veiculados pelas emissoras de rádio e televisão, em especial o Ministério das Comunicações (MiniCom). Hoje, o Ministério tem recuado de seu poder fiscalizador e sancionador. Além de não monitorar os programas, atua apenas diante de denúncias ou de casos com grande repercussão pública. Além disso, pesquisa mostra que, em diversos casos, houve omissão ou restrição da ação do órgão ao considerar apenas dois dispositivos legais do Código Brasileiro de Telecomunicações para analisar conteúdos, embora haja muitos outros relacionados à questão.

A postura omissa do MiniCom resulta em uma carta branca para práticas criminosas. Entre 2013 e 2014, apenas duas emissoras de TV foram multadas por violações cometidas por programas policialescos: a TV Band Bahia, multada em R$ 12.794,08, e a TV Cidade de Fortaleza, que pagou R$23.029,34. No primeiro caso, a apresentadora Mirella Cunha humilhou um suspeito negro por oito minutos. No segundo, dois programas da emissora veicularam o estupro de uma menina de nove anos de idade. Nas duas situações, a ação do Ministério ocorreu após denúncia e pressão por parte da sociedade civil.

No caso que envolve o apresentador Marcelo Rezende, essa permissividade mais uma vez ficou clara. Assim como o MPF, o MiniCom recebeu do Intervozes denúncia sobre a ocorrência de desrespeito à presunção de inocência e incitação à desobediência às leis ou decisões judiciais. Não obstante, em resposta encaminhada pelo Departamento de Acompanhamento e Avaliação de Serviços de Comunicação Eletrônica, o órgão disse que segue analisando denúncia, mas que o Poder Judiciário deveria ser procurado em busca de reparação. Segundo o comunicado, “só depois de ocorrer a condenação do culpado, é que o Ministério das Comunicações poderá, com a sentença condenatória transitada em julgado, instaurar processo administrativo contra a entidade detentora da outorga para executar o serviço de radiodifusão, ‘por abuso no exercício da liberdade de radiodifusão por ter sido este meio utilizado para prática de crime’.”.

Além do longo prazo para a sociedade ter retorno de algo que, pelas características da mensagem televisiva, tem forte impacto imediato, em geral as multas são irrisórias e não há uma campanha pública que mostre a ocorrência da sanção nem o problema cometido pela emissora. Assim, essas medidas acabam sendo insuficientes para desestimular práticas equivocadas. Essa situação torna ainda mais urgente a atuação crítica da sociedade e de órgãos com posicionamentos contundentes, como tem sido o Ministério Público Federal, em relação aos grupos midiáticos.

Nunca é demais lembrar que a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa devem conviver harmonicamente com os demais direitos e podem, inclusive, ser fundamentais para a promoção deles, caso sejam utilizadas com esse fim. Diante de tudo isso e tendo em vista a complexa conjuntura vivenciada no Brasil, sobretudo no campo dos direitos humanos, defendemos algo que pode ser feito desde já, como ocorre em democracias consolidadas ao redor do mundo: não aceitar violações. Se não enfrentarmos coletivamente essa agenda, estaremos fadados a viver em uma sociedade paralisada pelo medo e sujeita à reprodução de discursos que ampliam desigualdades sociais e legitimam a exclusão de grupos populacionais por meio da criminalização, do encarceramento ou do extermínio.

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62 Comentários

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Para a BANDIDAGEM, em seus mais amplos níveis de especialidades, DESDE DE O latrocínio ao punguista trombadinha, todo o afago e acolhimento dos "direitos (?) humanos" e sua babaquice demagógica e pegajosa., TUDO em favor dos marginais. Já, para a sociedade de bem, e do bem, a lei e o escárnio dos podres poderes, principalmente do judiciário. continuar lendo

Acho muito interessante comentários como o seu, termos como "sociedade de bem", alguém já tentou conceituar isso? Não seja superficial, se a violência e a privação de liberdade fosse resposta para a violência cotidiana dos grandes centos viveríamos num paraíso. Nossa polícia é uma das mais violentas e as instituições prisionais estão abarrotadas de pessoas em estado miserável. Por favor pense fora da caixa (e da televisão). continuar lendo

Concordo plenamente com você, Joao Paulo. continuar lendo

Concordo plenamente com vc, Jeferson Bruno Mendrot....

Quem é do bem e que é do mal?

Se conseguirem me responder isso de forma unânime, começo a cogitar a mudança de opinião. continuar lendo

João Paulo, lamentável, tenho a impressão de que não foi lida a sua mensagem integralmente. continuar lendo

Pois é João Olive,

Um fato narrado por você é capaz de definir toda a complexidade do tecido social.

O mais engraçado é que as mesmas pessoas que batem palma para Datena e cia, ultrapassam sinal vermelho, para em cima de faixa de pedestre, dão um trocado aqui outro ali para funcionário público, dá o jeitinho brasileiro, sonega impostos e depois cobra do Estado por saúde e educação, faz boca de urna em dia de eleição. Mas ão importa né?! Do "mal" são eles, "nós" não, "nós" só estamos dando um jeitinho.
Discurso hipócrita e que não resiste a 2 minutos de "tertúlia acadêmico-filosófico" como disse vc.
Sim, são os acadêmicos que param a vida para estudar determinado assunto, ou seja, tem fundamento.
Ao contrário das pessoas que baseiam sua opinião em Datena e cia.
O mundo é mais do que podemos ver!!! Pensa nisso.... continuar lendo

Chumbo na bandidagem ! Adoro ver bandidos sendo executados ! Quando um policial ou inocente morre por ação de bandido não há esta comoção. Chega de hipocrisia ! A lei do desarmamento é uma absurdo.
Brasil, paraíso para os bandidos, corruptos e delinquentes ! continuar lendo

Por que a força tarefa do MP não investiga os casos de abusos de meninas, ou melhor, de crianças que ja fora denunciado pela mídia no Pará onde um padre pedia desesperadamente ajuda para evitar o uso de meninas como objeto de desejos sexuais? Vamos deixar de proteger vagabundo, vamos deixar de pensar em dignidade para bandido. Que dignidade tem um individuo que estupra uma criança? Que dignidade tem um individuo que mata um pai de família para roubar-lhe o salário. O MP deveria preocupar-se com coisas que realmente denegrem a imagem do Brasil. Bandido é bandido e seu lugar é no inferno, mas nesse país de corruptos, acabam por serem elevados a categoria de santidade. continuar lendo

Sabia palavras. Enquanto inocentes e indefesos são deixados de lado, bandidos que já acordam em um dia sem saber se vão estar vivo no final dele são defendidos até seu último fio de cabelo. continuar lendo

Presunção de inocência é para juizes, nos autos. Se eu sou assaltado por um marginal, ou se um apresebtador niticia um crime ao vivo, data venua tal principio não se aplica. Atira sim, bandido merece bala e nós merecemos melhires políticos e melhores promotores e juizes. continuar lendo